Em Busca do Tempo Perdido

16 dezembro, 2009 at 22:35 (Uncategorized)

A rotina de quem passa o dia se deslocando

Mais de 42 mil pessoas vivem em Benevides, cidade da Região Metropolitana de Belém (RMB), conhecida como “o Berço da Liberdade” por ter, no século 19, abolido a escravidão 14 anos antes da Lei Áurea. A vida de seus habitantes está, em geral, intimamente ligada ao cotidiano da irmã mais velha do município, Belém, a 25 km dali.

Para chegar ou sair de Belém é preciso enfrentar uma longa viagem pela BR-316, estrada que interliga os municípios da RMB. Três linhas de ônibus fazem o trajeto em até duas horas, com coletivos lotados e irregularidades nos horários de passagem da frota. Juliana Brandão, 19 anos, estudante universitária, já se acostumou.  Quase nem reclama por ter ficado 35 minutos esperando o ônibus que a levaria de volta para casa. Já era o segundo que pegava naquela noite. Por sorte, não estava lotado. “Já foi pior”, ela informa, quase querendo comemorar.

Há alguns anos, a linha era feita por outra empresa, e segundo Juliana, era comum que os veículos quebrassem e demorassem a passar. A empresa faliu e foi substituída pela atual, que mantém certa regularidade e costuma cumprir seus horários. Juliana mora no final da linha do Benevides – Presidente Vargas, e precisa pegar dois ônibus para ir e voltar da Universidade Federal do Pará, onde cursa o quarto período de História. Já na parada, ela cumprimenta seus conhecidos de Benevides que, como ela, passam o dia em Belém. “O ônibus é o lugar onde eu reencontro meus amigos de infância, pessoas que eu só vejo aqui e em determinados horários”. Àquela hora, Juliana encontrou um dançarino, Ruan, e uma universitária, Lu, seus amigos que voltavam de ensaio e aula.

Numa viagem longa como essa, é preciso arranjar assunto para matar o tempo. Conversa-se sobre tudo: o outdoor que anuncia um show vira mote para uma discussão sobre o gosto musical de cada um; a amiga desfila seu inventário de brincos e bijuterias feitos de matéria natural; o amigo explica o motivo de ter inventado um novo corte de cabelo; Juliana relembra histórias da adolescência, que ela deixou há apenas alguns anos.

Numa das paradas, um dos passageiros faz sinal para fora do ônibus e, como num bar, pede para o vendedor lhe trazer uma latinha de cerveja. Seu companheiro de banco gosta da ideia e pede também uma pra si. O passageiro de trás decide que está com sede e solicita outra latinha. Ainda oferece para a moça da cadeira ao lado, que recusa, talvez porque quinta-feira não fosse um bom dia para beber. Por alguns minutos, relaxados, os três passageiros saboreiam sua “gelada”, no sacolejar do coletivo, embora calor não fizesse, nem o sol fosse aparecer em menos de 6 horas.

Entroncamento

No horário do rush, por volta das seis da tarde, transpor o trecho que separa Belém de Ananindeua é uma missão que não se desempenha em pouco tempo. O lugar é chamado de “entroncamento”, que é o termo técnico para designar o cruzamento entre duas grandes vias de mão dupla. Por ser a única porta terrestre de entrada e saída da capital paraense, é também o principal cenário dos maiores congestionamentos de ambas as cidades.

Dez horas da noite, no entanto, o Benevides – Presidente Vargas cruza seu túnel quase sem resistência. Os milhares de automóveis que trafegam por ali durante o dia dão lugar, às dez da noite, a uma calmaria digna da pacata Benevides, aonde Juliana anseia chegar logo. Ela considera que transporte público eficiente contribui para o bem estar da cidade e do planeta. “Nos momentos de maior sufoco, eu costumo pensar que estou fazendo um sacrifício por uma causa justa”. Se não houvesse ônibus e cada pessoa resolvesse fazer o caminho com seu carro particular, certamente o Benevides – Presidente Vargas não teria tanta facilidade em vencer o Entrocamento. “Mais pessoas no ônibus, são menos carros na rua”, equaciona a estudante. “O problema é que o transporte público está longe de ser excelente”.

Juliana já passou por grandes dificuldades dentro de coletivos. Uma vez, voltando da universidade, passou mal e quase desmaiou. Dentro do ônibus lotado, ela não conseguiu encontrar ar para respirar, sua visão começou a ficar turva e ela cambaleou. Alguém percebeu a tempo e providenciou um banco para ela se recuperar.

Noutras vezes, viu passageiras tendo seus corpos invadidos pela malícia de homens que se aproveitavam do empurra-empurra para tocá-las desrespeitosamente. “Mulher sofre muito com isso, os caras não respeitam”. Na maioria das vezes, fica por isso mesmo, noutras os agressores recebem punição: “Um dia, uma moça gritou acusando um homem de ter passado a mão nela. Os outros homens do ônibus partiram pra cima dele, o agrediram e enxotaram do ônibus, a chutes.”

Quase no final da linha, depois que todos os passageiros já haviam descido, Juliana chega em casa e é recebida pela mãe, Dagmar Brandão, 42 anos, que há 30 minutos a esperava no portão de casa. “A gente sempre fica preocupada com assalto, violência, principalmente a essa hora da noite”, lamenta Dagmar. Pelo menos um ônibus é assaltado por dia na Região Metroplitana de Belém, de acordo com dados de 2008 do Comando de Policiamento da Capital (CPC). Assaltos em coletivos também estão entre as principais causas de ligações feitas ao Disque-Denúncia, serviço da Secretaria de Segurança Pública do Estado, que tenta combater o crime com auxílio da sociedade.

Vida no ônibus

Juliana nunca foi vítima de violência dentro de um ônibus e considera perigosas apenas as vans que fazem transporte alternativo. Mesmo assim, pelo cansaço da viagem, pelo tempo e dinheiro que se perde no transporte diário de casa para o Belém, Juliana já pensou em morar na capital, na casa de parentes. Por motivos pessoais, a empreitada não deu certo. Ela continua morando em Benevides e estudando a 25 km dali, passando boa parte de seu tempo no trajeto entre as duas cidades: “Tinha aquele comercial do colchão que você passava um terço da sua vida sobre ele. Eu tenho a impressão que eu passo um terço da minha vida dentro de um ônibus”, brinca a aspirante a arqueóloga.

Somando a média de viagens que Juliana faz por dia, ela calcula que perde 3 horas diárias se deslocando pela RMB. Se dispusesse desse tempo livre, ela o usaria para se exercitar: “Quando eu estudava em Benevides, caminhava todo dia da minha casa até o ginásio”. Na nova rotina, os exercícios físicos não acharam lugar.

Apesar de tudo, ela vê vantagens em suas cansativas viagens diárias: “Eu reencontro meus amigos, boto o papo em dia, descubro o que eles andam fazendo. Mesmo quando não encontro ninguém, aproveito pra ler um livro, os textos pra universidade, ouvir uma música, ou mesmo dormir.” Ela também adora Benevides e seu cheiro de cidade sem fumaça. “É a primeira coisa que eu faço quando eu desço do ônibus: respiro esse ar puro”. E, realmente, o desgaste da viagem é compensado pela primeira baforada do vento que sopra da vegetação abundante, frio e limpo, diferente daquele da cidade que Juliana deixou há uma hora e meia e 25 km atrás.

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