o último texto.

10 julho, 2008 at 03:21 (Uncategorized)

Não existem páginas brancas. Pois é, eu também não consigo entender. Mas é o que dizem: não existem páginas brancas ou em branco. Se você olha para alguma folha de papel e acha que ela é branca, alguma coisa você deixou de entender. É por isso que eu olho para essa página que vai se desenhando aos poucos, se sujando dessas mal traçadas linhas (como querem os maus poetas), fazendo de conta que fecham as contas que eu faço, eu olho pra ela e digo, com toda a convicção: página, não és mais branca! E me vem um cara lá de Curitiba, com a fleuma arrogante de um sobrenome estrangeiro, dizer que branca mesmo, ela nunca foi.

E o que a página diz, clara e brancamente?: esse bem pode ser meu último texto.

Não pretendo idealizar minha última crônica, como já fez o Fernando Sabino, contando a sutil história daquela negrinha que festejava o aniversário num bolinho de padaria. Depois da negrinha, eu tive um encontro marcado com o Eduardo Marciano, conheci o menino no espelho, e agora vou respirar os mesmos ares que o mineiro respirou para escrever seus singelos acordes caipira-citadinos. Se me valerão alguma coisa? Se me inspirarão boas palavras? Difícil saber. Ainda fico com a mórbida sensação de que este, mal e porcamente, pode ser meu último texto.

Não sou eu quem primeiro digo. A folha em branco já dizia antes de mim. Agora, alopradamente, garrancho e borro, com letras tortas, a mensagem que ela tinha para lhes dizer. Mas não parece que ela quis isso só pra mim? Talvez o Fernando Sabino tenha encontrado o menino no espelho antes de todo mundo. Talvez as página onde estão aqueles originais o tenham visto primeiro, em todo o seu fiel reflexo infantil. Chego a um arremedo de conclusão: o que dizem quando dizem que página nenhuma é em branco é que o escritor não precisa ter coragem pra escrever um texto de verdade, assim do nada. Nada disso. Escritor não escreve nada. A história já está escrita — sempre esteve — e o bom samaritano só tem o trabalho de torná-la inteligível à humanidade. Portanto, não sou eu quem diz que este é meu último texto, tampouco foi Sabino quem descreveu a pureza daquele último sorriso. Isso tudo já estava ali, codificado em letras de silêncio. Nós só traduzimos. Escritor é tradutor; tradutor é traidor…

E, se este é meu último texto, eu saio com a sensação de que poderia ser um texto melhor. E me consolo, afinal, a culpa não é minha. É da página, que nunca esteve em branco, nem nunca pôde estar.

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“Foi mal, Adriano, eu fui um babaca infantilóide conosco mesmo. Prometo não fazer de novo.”

1 julho, 2008 at 11:31 (Uncategorized)

Existem poucas coisas mais constrangedoras que ter a certeza de que você agiu de modo ridículo. A consciência é a pior amiga nessas horas: sem ela, você provavelmente não se daria conta de seu erro, e também sem ela, você poderia continuar sua existência como um idiota. Mas um idiota feliz.

É raro não se surpreender com uma manifestação sua do passado. Naquela foto você tá bem gordinho e descuidado, naquela época você se vestia mal, durante aquela festa você não trocou uma palavra com Fulana, por causa daquele motivo tão bobo. A gente sempre se questiona se hoje não teria uma atitude diferente diante do mesmo problema de antigamente. Em geral, mesmo que não concordemos com o que fizemos ontem, arranjamos alguma desculpa, hoje, para tê-lo feito. “Ah, eu larguei meu casamento de dez anos pra ficar com a Marcinha porque eu tava apaixonado, né? Como eu ia saber que a Marcinha, aquela piranha, ia me trair dali a dois meses?” “Eu não passei na prova pra que eu estava estudando há mais de dois anos, não porque eu sou incompetente, mas porque nesse mesmo período eu tive que trabalhar, fiquei doente, não tive dinheiro pra comprar todos os livros, enfim, ano que vem eu faço de novo” É difícil conviver com o próprio erro e incompetência. Essas desculpas, essas justificativas nos fazem estar de bem conosco mesmo. As pessoas podem não acreditar, podem achar apenas que “desculpa de amarelão é comer barro” (o que quer que isso signifique), mas o importante é que nos deixam sinceramente bem. O problema é querer justificar o injustificável, quando você mesmo sabe que uma atitude sua não tem justificativa. Você agiu como um idiota porque de fato você era um idiota. Você estava feio porque você de fato era feio, não porque as roupas não ajudavam. Não passou na prova porque não se dedicou o suficiente, não se dedicou o suficiente porque não teve competência. Quando se está plenamente convencido do erro, não adianta botá-lo numa bolha de explicações que mascarem a existência dele. “Foi mal, Adriano, eu fui um babaca infantilóide conosco mesmo. Prometo não fazer de novo.”

O motivo de tudo isso é existir na internet um banco de dados que salvou — e continua salvando — páginas aleatórias criadas ao longo de todos esse anos de rede mundial. Uns desses instantâneos do passado mais ou menos distante são páginas de blogs que eu escrevia no começo da década 2000, logo que comecei a usar computadores com maior freqüência e, principalmente, quando lutava pra permanecer online na saudosa e precária conexão discada. Muito desse pouco tempo disponível de internet eu dedicava para atualizar os blogs que eu mantinha como diarinhos virtuais, a que pessoas de muitas partes do Brasil iam, em busca de informações sobre a vida de um moleque que elas nunca tinham visto e sequer sabiam se, de fato, existia. Devo confessar que esse tipo de exposição me agradava e a simples possibilidade de que alguém me leria compensava a luta diária contra o modem dial-up. Os arredores do ano 2000 marcaram uma fase da minha vida em que eu tomava gosto pela palavra escrita (lembro de, por essa época, ter começado a escrever um diário de papel que foi simplesmente uma idéia já nascida morta), e a internet criou a possibilidade de o que eu escrevia — ou tentava — tivesse leitores — a razão última de escrever. Meus blogs recebiam taxas de visitação que são ridiculamente irrisórias perto dos grandes blogs atuais. Mas naquela época tudo era festa, eu pulava de felicidade quando alguém comentava um dos posts, mesmo que fosse pra criticar e mesmo que eu desconsiderasse a crítica. Não era importante melhorar, era importante ser lido e comentado. Só. Hoje chamam isso de internet-arte, eu prefiro chamar de babaquice mesmo.

Lendo as páginas que a WayBackMachine salvou, dá pra perceber como eu era um estonteante idiota. Sério. Desses que a gente aponta na rua e tem vergonha de estar perto. É por vergonha de mim mesmo naquela época que eu não coloco os links aqui. Não preciso que me vejam nas minhas piores roupas, mesmo que eu hoje eu as já tenho jogado fora. Eu era um escritor de 12 ou 14 anos que achava lindo falar palavrões. Falava palavrões a cada duas linhas; devia achar que era uma forma de rebeldia, que as pessoas iam ler um “vai pra puta que te pariu” e iam pensar: “olha como esse cara tem atitude!”. Aliás, ter atitude pra mim devia ser quase sinônimo de falar palavrões. Digo quase porque outros elementos compõem a parafernália de atitudes que eu expunha nos blogs, para que eu parecesse um ser acima da humilde ralé que estava a toda volta. Por exemplo, eu me dizia socialista, odiava os EUA, votaria no Enéas pra presidente, e apregoava ódio ao povo brasileiro. Não lembro se eu queria ser engraçado ou posar de revolucionário. Mas nos dois casos o cenário cheira a uma piada de muitíssimo mau gosto, de alguém que não percebe quando é contraditório, de um pré-adolescente “alienado”. (alienado é outra das palavras que eu usava para me referir à população em geral; eu nunca tinha lido Marx e provavelmente sequer sabia quem ele era, mas queria dar uma de inteligente). Considere-se alienado a pessoa que não compartilha das mesmas opiniões que você: nem se eu tivesse lido O Capital em alemão, não poderia aplicar tão mal um conceito.

Eu não escrevia em língua portuguesa. Criticava as miguxas invertebradas, mas também eu não dava importância às formalidades das construções textuais. Não que hoje eu segure uma gramática como um fundamentalista segura um livro sagrado, mas acho que, pra se fazer entender minimamente, você tem que ter um pouco de cuidado com as palavras. Lendo aqueles blogs, apreende-se que o importante pra mim era ser lido, não importava ser entendido ou não, não importava se eu era rude, preconceituoso ou simplesmente se eu não tinha entendido nada de nada e cuspia uma série de bobagens na internet. O importante era aparecer e ser elogiado. Estar entre os blogs em destaque na página inicial do Weblogger, numa eleição que era tão sem critério quanto sem sentido. Narcisismo, eu sei. Como é que eu vou criticar as menininhas que botam fotos fazendo pose no Orkut e participam das comunidades “Mulheres mais lindas do ____ (nome de algum lugar do mundo, real ou virtual”? Não dá. Eu tava no mesmo barco que elas estão. Ainda bem que eu pulei fora.

Mas temos um diferença fundamental entre nós, o que vai fazer esse texto não ser um manual de autocomiseração na internet: eu, diferente delas, graças ao suporte em que fluiu meu narcisismo, pude aprender muito com meus erros. Errando, aprendi o jeito certo de escrever razoavelmente, já consigo ser entendido, e pelo menos não arranco risinhos constrangidos de quem lê um texto e se pergunta por que diabos essa pessoa não vai fazer outra coisa em vez de escrever. Aposto que não foram poucos os que fizeram isso quando leram aqueles meus blogs do começo da década. Não os culpo, eu teria feito o mesmo hoje. Só acho que seria saudável se eles me dissessem, embora tenha quase certeza que eu não daria nenhuma bola. Teve um cara que, comentando um dos meus textos, disse que eu errava muito no português e que podia prestar mais atenção, fazer uma revisão antes de publicar etc, conselhos sensatos que eu só daria pra alguém que eu realmente me importasse com o melhoramento. E o que eu respondi? Mandei o cara e a língua portuguesa tomarem no olho de seus cus. Na hora, devo ter achado lindo. Hoje, enrubesço. “Foi mal, Adriano. Eu fui um idiota conosco”.

Mas, se hoje eu posso pensar nesses textos e sentir vergonha, é graças ao amadurecimento por que passei e que se reflete nas minhas palavras. Já consigo pensar melhor nos argumentos e articular melhor as idéias. Ainda gosto de ser lido, ainda acho isso essencial, uma condição sem a qual não faz sentido escrever. Mas agora isso não é o mais importante, não passo por cima de qualquer coisa por leitores, prezo pela qualidade deles, não pela quantidade (e já posso admitir que usei um clichê enjoado, como agora ^^). Não me importo em parecer diferente ou semelhante aos demais, descobri a identidade e a alteridade, a metáfora e a sutileza, coisas com as quais eu nem sonhava em 2000. Se melhorei é porque errei e errei MUITO. Não creio que as meninhas das fotos do Orkut vão aprender de enquadramento ou iluminação, mas se aprenderem, melhor pra elas.

Por fim, escrever (mal) nos blogs me trouxe outros benefícios, além de sonhar com a fama virtual instantânea (ainda acho que sonhos são sempre bem vindos). Foi graças aos blogs, que eu conheci uma grande amiga que mora numa terra distante e fria, que de outro modo nunca teria vindo até mim. Hoje, estou na perspectiva de vê-la pela primeira vez ainda esse mês, numa das belas praias de Angra dos Reis. A Karin, de algum modo, gostava daqueles textos e até escreveu junto comigo um dos blogs durante algum tempo. Posso imaginar que ela concorda com muitas das minhas opiniões sobre mim de oito anos atrás. O importante é que estávamos juntos no mesmo barco furado e saímos antes que ele afundasse.

Mais ainda, lendo um dos últimos blogs que eu escrevi (imagino que até 2003) Jordana, a — sem dúvida alguma — pessoa mais importante da minha vida, passou a me olhar de um jeito diferente. Talvez em 2003 eu já tivesse começado o processo de mudança que desembocaria nos e-mails que trocaríamos, eu e Jordana, no fim daquele ano e que me fariam um homem apaixonado. Apaixonado e disposto a quase tudo para ficar com ela, disposto a outros erros e acertos. Mais acertos que erros, eu espero.

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