Meu Sangue Gela Quando Dizem Que Eu Estou Sendo Utópico

6 abril, 2009 at 02:04 (Uncategorized)

Funciona assim: eu critico algum comportamento individual ou coletivo que considero errado ou inapropriado por qualquer motivo, e alguém muito conhecedor do mundo vem me dizer, como se me revelasse uma verdade inelutável: “olha, seu discurso é muito bonito e até está correto, mas no mundo real, na realidade em que nós vivemos, isso não é assim, não”. Eu calo. E a pessoa continua, com o mesmo sorriso indulgente: “todo mundo sabe que na vida real isso não daria certo!”.

E eu fico me sentindo o próprio Thomas More, escrevendo sobre uma ilha inexistente e apenas imaginável, constituída de personagens irreais que vivem situações incoerentes, alheias a qualquer noção de verdade. Ou seja, o que a pessoa quer dizer é que eu sou muito ingênuo para acreditar numa Utopia como a que eu acabei de descrever.

Utopia - Thomas More
Utopia – Thomas More

Utopia versus Grandes Objetivos.

A definição de utopia, segundo o senso comum, é uma meta que exige esforços tão grandes para seu cumprimento, que atingi-la é impossível. Assim, utópico é quem espera e crê que o mundo vai se tornar um paraíso sem sofrimentos ou feridas, um lugar de amor, paz e beleza, sem conflitos e perfeito, amanhã, logo que acordarmos para mais um dia de trabalho. Utopia, no entanto, é muito diferente de ter apenas objetivos grandes, como a resolução de problemas complexos, mas que dependa somente de atitudes simples, como a tomada consciência e a reflexão individual.

Por exemplo, diminuir o racismo latente no fazer social da população brasileira é um objetivo grande, enorme até, mas nunca uma utopia, já que é uma ação que depende muito da consciência individual em não repetir atitudes racistas e discriminatórias diariamente, mecanicamente. O simples fato de a pessoa não contar piada de preto e não reproduzir às novas gerações, o discurso racista em embalagem moderna e divertida já é uma atitude que, silenciosamente, combate o racismo. Quem conta piadas racista age como alguém que entrega a uma criança um pacote de veneno para rato dentro da caixinha do Mc Lanche Feliz. O nó da questão é que nem o piadista, nem o ouvinte, sabem que dentro da caixinha há chumbinho e acabam repassando-o por aí  dentro de outras embalagens felizes. E o racismo se perpetua, porque a maioria dos racistas não sabem que o são. Diminuir o preconceito, portanto, pode ser simplesmente fazer com que as pessoas percebam que estão envenenando as outras. Um grande objetivo que pode ser alcançado através de (muitas) pequenas atitudes.

Bastante diferente de uma utopia.

O que leva, então, alguém a acusar o outro de estar querendo o impossível, mesmo quando seus objetivos são plenamente realizáveis?

Quem acusa alguém de estar sendo utópico, geralmente tem algumas características:

1) Arrogância intelectual: eu sei como as coisas funcionam, melhor do que você. Se você acha que isso pode ser assim, então você está sendo utópico, porque no mundo real, no mundo que eu conheço melhor do que você, isso nunca daria certo.

2) Dificuldade em desfazer pré-conceitos: eu tenho certeza que as coisas funcionam assim porque eu já pensei o suficiente sobre isso. Se você tem uma opinião contrária à minha, naturalmente deve ter pensado pouco ou visto tudo de uma posição desprivilegiada. Seja como for, eu estou certo e você só está sendo um utópico, coitado!

3) Reflexos apurados: antes que eu possa pensar em um argumento válido, eu vou dizer que você está sendo utópico porque essas suas idéias me parecem muito ingênuas.

4) Preguiça de pensar: como eu já sei que as coisas são do jeito que eu acho que elas são, não adianta nada eu ficar esquentando a cabeça com os argumentos desse ingênuo, vai ser perda de tempo, já que ele está sendo utópico.

5) Visão de mundo limitada / crença de que as coisas sempre foram e sempre vão ser assim: se eu sou assim, então esse tipo de comportamento é o normal. Se na minha casa, no meu bairro e na minha cidade funciona assim, por que achar que no resto do mundo pode ser diferente? Afinal, as pessoas agem, pensam e são sempre da mesma forma, ao longo do tempo e do espaço.

6) Desesperança/Pessimismo: você pode até estar certo, mas nós nunca conseguiremos mudar o estado das coisas. Elas são assim e pronto, o homem é imperfeito e pronto, os políticos são ladrões e pronto, as pessoas vão sempre querer matar as outras levianamente e pronto. Melhor ir fazer alguma coisa útil do que ficar perdendo tempo pensando nisso.

Claro que essas características se imbricam e nunca aparecem sozinhas, tampouco são auto-excludente nem apanágio de todos que acusam os outros de serem utópicos. Mas em geral, um ou outro desses pecados está presente.

A necessidade da reflexão continuada.

Talvez um dos grandes problemas de nosso tempo seja a falta de tempo para pensar. Há muitas pessoas que não são lá muito abertas a novas opiniões, e muito menos a opiniões que divergem se seus conceitos pré-estabelecidos. Acredito que isso se deva ao fato de acharem que já sabem o bastante das coisas, que os pontos de vistas que já conheceram são suficientes para ter uma noção completa e fechada sobre o mundo e tudo mais. Isso é normal e justificável: ninguém precisa saber tudo de uma vez. Não tomar uma posição (mesmo que limitada) seria tender para ignorância absoluta, ficar em cima do muro sempre. Mas a grande sacada, o grande pulo do gato, a grande lição que se tira da pedagogia da vida é ter a certeza que suas certeza podem ser derrubadas a qualquer momento. E estar preparado (e aberto) a isso. Se você não souber que você é um ser em mutação (uma metamorfose ambulante, como já quiseram) pode pedir pra vida parar e descer: continuar não será muito proveitoso. Mais do que nunca, tenho a certeza de que estamos andando sobre esse mundo para nos ensinar e aprender com os outros, crescer na diferença, fazer uma viagem única de auto-conhecimento através desses seres imperfeitos, que somos nós. Claro que essa é uma certeza que pode ser desfeita a qualquer momento, basta que você, leitor, tenha paciência, me pegue pela mão, e me conte o que você acha sobre tudo isso. Sou todo ouvidos e adoro que discordem de mim.

Só não cometam o desfavor de dizer que eu estou sendo utópico, porque isso seria chamar de ingênuo todo o esforço que eu faço pra me entender, entender vocês e as nossas relações.

E antes de terminar, um convite: se o mundo que queremos não é o mundo que temos, que tal tentar intervir? Se não formos nós, quem será? Temos, a nosso favor, uma arma muito eficiente: essa que vos fala, a palavra. Mais terrível que muitas baionetas e canhões, ela é capaz de vencer guerras sem derramar sangue. Para os pessimistas fica um conforto: em quinze minutos, com um texto honesto e bem escrito (como esse), você pode se fazer ouvir e influenciar o fazer social de alguém, mesmo que seus poucos leitores sejam alguns colegas da rua, da faculdade, do colégio ou pessoas que caiam de pára-quedas no seu blog, vindo atrás de outras coisas. De repente você até ganha uma batalha silenciosa, numa guerra maior, de todos nós.

E sem utopias.

3 Comentários

  1. Priscila Costa said,

    Sabe, eu não acho que você escrevendo em blogs você poderá mudar alguma coisa…

    ASUDHAIUDHASDIUSAHDUIH. Brincadeeeeeira, Adriano!
    Sei como você se sente, principalmente quando inventamos de nos meter em políticas que possuem ideários completamente fora dos padrões de “realidade”. Mesmo qeu você não concorde com todos os ideários socilistas por exemplo, que só busque uma sociedade menos estratificada e desigual, só porque você cita Marx alguém já vem dizer que você é louco, que o mundo não será socialsita nunca e você está perdendo seu tempo [não estou fazendo discuros de PSOL aqui, rs é só um exemplo!]
    Mas pra isso temos que ter respostas sempre, para o exemplo dado, eu digo logo que o Feudalismo também parecia ser eterno! Afinal, era coisa de Deus e perdurou por mil anos. Passado o tempo, hoje comos capitalistas!

    Às vezes acabamos até acreditando que somos utópicos, de tanto falarem.
    Mas aí, é bom a gente lembrar que quem acha que é o dono da razão também está sendo utópico e não sabe. Pois quem poderá dizer o que está certo e o que não está ao se tratar de idéias de outrem ? Idéia, é idéia, realidade é realidade. Isso não é utópico. Tornar idéias em ações, e em realidade é outra coisa!
    Os problemas dos que costumam sair intitulando os outros de utópico são geralmente pessimismo, comodismo e preguicite aguda de tornar algo melhor!
    Não sei se fui clara, mas é isso. =]

    Bom, tendo dito tudo isso, gostaria sinceramente que você lesse meu último post e me desse uma opnião spbre o jornalismo no Brasil. Estou revoltada com uma matéria da revista época que está circulando por aí, ridicularizando minha cidade Porto Velho, e portovelhenses como eu! E eu nunca quis tanto matar uma jornalista!
    rs

    Se puder dar uma olhada!

    Abraços de sempre!

  2. Caroline said,

    Hahaha bom texto, Adriano.
    Concordo contigo.Não vou escrever muito sobre isso, porque eu vivo um conflito interno entre sonhar alto x “realidade”.É complicado manter esse equilíbrio, ainda mais com o mundo cada vez menos esperançoso e sonhador.Não chega a ser ingenuidade, mas basta olhar para a humanidade para perceber que não somos estáticos, tudo muda, porque a grande possibilidade da vida é justamente nossa mudança.Creio que exista uma linha tênue entre utopia e grande sonho, linha essa que poucos conseguem distinguir.Termino esse parágrafo com uma sábia frase que eu ouvi de uma professora de Literatura lá na UEPA:
    “Nós nascemos águias, mas somos criados como galinhas, até perdemos a capacidade de voar”.

  3. Fernanda said,

    O meu também!

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