Bom filho à casa torna

23 fevereiro, 2009 at 06:40 (Uncategorized)

Juan Antonio Alvarez foi treinador do Paysandu na década de 60. Foi sob o seu comando que a esquadra alvi-celeste conquistou uma de suas maiores glórias, imortalizada no hino informal que toda torcida conhece e canta: vencer o Penãrol por 3 x 0, na Curuzu em 1965. Se “até o Penãrol veio aqui pra padecer”, Juan Alvarez veio a Belém para ser feliz. Pegou um time desmotivado na quase lanterna de um campeonato paraense, e o fez ser campeão. Tri-campeão. Uruguaio, havia sido goleiro do Nacional de Montevidéo e nunca em sua carreira vencera o arqui-rival Penãrol. Nunca, até aquele 18 de Julho de 65, quando um ex-derrotado uruguaio comandou um time (cujo nome é o de uma cidade uruguaia), e o levou a uma vitória incontestável ante o maior clube do Uruguai de então. Juan Alvarez se dizia eternamente grato ao Paysandu por proporcionar a ele a felicidade de vencer seu maior rival. A torcida bicolor, por sua vez, será eternamente grata a este homem que ajudou a construir a história do nosso amado clube, clube que ele continuou o amando mesmo longe da Curuzu, de volta ao Uruguai.

Dia desses, soube que a filha de Juan Alvarez, Amparo, mandou um e-mail para a diretoria do Paysandu. Transcrevo-o em tradução livre:

“Senhores diretores do querido Paysandu, Lhes estou enviando este e-mail para me comunicar com os senhores. Primeiro, me apresentar e lhes dizer que sou a filha de Juan Alvarez, Amparo. Talvez se lembrem ou já tenham escutado falar de meu pai. Uma das histórias do clube é de quando ganharam o Peñarol do Uruguai e lhes tiraram a invencibilidade. Meu pai era o técnico. Ele, hoje falecido, me deixou a herança do amor por este time e essa cidade tão amada por ele. É por isso que quero pedir-lhes autorização para depositar suas cinzas no campo da Curuzu, que era aonde ele mais queria voltar. Espero estar dirigindo-me às pessoas corretas para esse pedido. Espero ter uma resposta favorável e que marquem uma data para eu poder viajar. Sem mais e com um apertado abraço, mais uma fã do nosso grandioso Paysandu e de sua bendita terra e de Nossa Senhora de Nazaré, Amparo.”

É possível imaginar, mesmo de longe, o tipo de sentimento que leva alguém a expressar aos filhos o desejo de voltar, depois de morto, ao lugar onde mais foi feliz. Quem sabe o velho técnico não tinha esperanças de reencontrar a felicidade que o gramado esburacado da Curuzu um dia lhe concedera? É possível imaginar o tipo de lembrança que aqueles alambrados gastos, aquelas quatro linhas apagadas tão familiares a nós, bicolores, remetiam ao velho em seu exílio às avessas. Será, talvez, o mesmo tipo de lembranças que eu terei quando o velho for eu, e não mais puder acompanhar o time? Seria o mesmo tipo de lembranças que teve meu avô, bicolor apaixonado, que morreu acompanhando o clube apenas pela televisão? A idéia de voltar no tempo, de ter uma nova oportunidade, de reviver glórias do passado é universal e atemporal. Há algo de universal nas cinzas de Alvarez. O desejo de estar sempre perto de quem se ama, e não poder. O desejo de se juntar fisicamente à grama do estádio, onde a sua paixão clubística ficará eternizada, já que enquanto vivo lhe era impossível. Quando o objeto de nosso amor é inacessível nos resta a esperança de ser feliz em outro plano.

Como torcida fiel que somos, torceremos agora para que Alvarez esteja feliz em seu outro plano e para que a diretoria do clube autorize a união desse bicolor fiel a seu amor distante e jamais esquecido. Ele terá de novo sua chance de derrotar o imbatível Penãrol e nós teremos a oportunidade de nos encontrar outra vez com esse querido bicolor. Bem vindo de volta, professor!

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Paissandu, o campeão carioca de 1912

13 fevereiro, 2009 at 15:07 (Uncategorized)

pacPoucos bicolores sabem que o mais importante clube de futebol do norte do país tem um homônimo no Rio de Janeiro. O Paissandu Atlético Clube, fundado em 1872 com o nome de Rio Cricket Club, foi um dos primeiros clubes a trazer para o Brasil a prática organizada de esportes, que no século 19 era muito comum na Europa. Criado por ingleses residentes na então capital do Império, o Rio Cricket Club, como o nome sugere, se dedicava principalmente à prática do críquete, esporte muito parecido com o beisebol, e bastante difundido na Inglaterra.

Em 1880, o Rio Cricket Club mudaria sua sede para um terreno localizado na rua Paysandu, no centro do Rio de Janeiro, terreno pertencente ao Conde d’Eu, razão pela qual a Princesa Izabel, sua mulher, frequentemente fazia parte da assistência dos eventos no clube. Com a mudança de endereço, o clube mudaria de nome, em homenagem à rua onde se localizava: nascia assim o Paysandu Cricket Club que, mais tarde, seria o Paysandu Atlhetic Club, nome que, com adaptações lingüísticas, carrega até hoje.

Como um clube criado e freqüentado por ingleses, o Paysandu se destacava em esportes que no começo do século eram especialidade britânica: o já citado críquete, o bolws (uma espécie de bocha), o tênis e… o football. Não se engane: os primeiros e melhores jogadores de futebol do começo do século passado eram ingleses e os brasileiros tinham de se contentar em tentar aprender (muitas vezes, apenas olhando, já que o football era esporte para rico). Goalkeepers, half-backs, forwards e os demais membros do team, desfilavam pelos fields e grounds cariocas, sempre sob o olhar atento do referee. O Paysandu, com a fleuma e o charme ingleses, foi campeão carioca de 1912, conquistando a taça Colombo.

Com a popularização do “esporte bretão”, o Paysandu, que tinha entre seus membros os estrangeiros mais destacados e mais ricos da sociedade da então capital federal, foi perdendo espaço e habilidade com a bola nos pés. Aos poucos os brasileiros iam se tornando melhores que os ingleses, os pobres melhores que os ricos, os negros melhores que os brancos, e o Paysandu não experimentou a mesma abertura social e étnica em seus quadros atléticos que experimentaram, por exemplo, Flamengo e Fluminense, só pra ficar em dois dos mais elitistas clubes cariocas do começo do século. E foi se tornando menos expressivo no football a cada campeonato, até que, por fim, deixou de praticá-lo oficialmente.

Mais recentemente na segunda metade do século 20, o Paissandu se mudou de novo, mas manteve o nome dado em homenagem à antiga sede. Hoje, um clube frequentado por estrangeiros ricos adeptos de esportes geralmente desconhecidos no Brasil, elitista e inexpressivo no futebol, o Paissandu carioca guarda de semelhante com seu primo do norte, apenas o nome mesmo. E talvez as cores, branco e azul (embora um azul mais escuro e menos bonito que o celeste)

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O sistema de cotas e o racismo.

7 fevereiro, 2009 at 01:01 (Uncategorized)

arrestblackbabies

Atualmente estamos sem tempo pra nada. Com o dia cheio de atividades, nos sobra pouco tempo pra refletir, pra cultivar uma espécie de ócio necessário ao bom entendimento do mundo. A falta de tempo nos dá margem pra que conheçamos as coisas pela metade. E quando as conhecemos, não temos tempo ou informação suficiente para conhecê-las bem, o que pode nos levar a catar a primeira opinião que nos parece aceitável, e sair repetindo-a por aí.

A comunidade no Orkut formada por pessoas contrárias ao sistema de cotas sociais e raciais implantado nas universidades federais parece ser um bom exemplo dessa falta de informação e reflexão sobre um problema que, a meu ver, é a grande questão a ser digerida pelo Brasil atualmente. Não o sistema de cotas em si, mas o racismo mascarado que ele denuncia, desvela e nos revela diariamente nos comentário impregnados de ódio daqueles que o tratam como a injustiça das injustiças. Se é pra ser justo, devo dizer que muitos dos quase 30 mil membros da comunidade Contra Cotas talvez não tenham lido ainda as bobagens que algumas dessas pessoas escrevem lá. E se lessem, talvez discordassem e sentissem uma vergonha alheia fortíssima. Ser contra o sistema de cotas não é errado. Errado é não pensar bastante sobre ele, antes de ter um posicionamento. Errado é julgá-lo injusto, simplesmente porque você não foi privilegiado por ele. Errado é achar que quem se beneficia dele é aproveitador, ladrão, despreparado, burro. Há pessoas que nutrem um ódio mortal por quem tomou sua vaga na universidade, mesmo tirando uma nota menor. E não são poucas. O ódio passional engendra uma série de argumentos, supostamente racionais, de que o sistema de cotas se trata de “tapar o sol com a peneira”, de que é uma prova irrefutável de racismo às avessas, de que os negros e pobres são acomodados ou se fazem de coitados, de que é perfeitamente justificável um cotista ser discriminado já que foi beneficiário de um sistema “injusto”.

Ou seja, todos argumentos que, partindo de um pressuposto errôneo de que as cotas vêm pra quebrar um sistema de igualdade e democracia, provam, ao contrário, que o racismo à brasileira vai muito bem, obrigado! Tão bem que seus mecanismos de perpetuação continuam funcionando perfeitamente: pra continuar existindo, ele faz com que todos os seus beneficiários o neguem diariamente. Quem abrir o bico e acusar sua existência será alvo de execração pública. Se isso é eficiente? Terrivelmente eficiente. Para situar o debate, vou propor algumas reflexões.

O que são as cotas, afinal?

O sistema de cotas sociais e raciais faz parte de um grupo de políticas chamadas ações afirmativas e vem suprir uma demanda histórica: desde que existe o sistema educacional brasileiro, a população universitária de negros e pobres é consideravelmente inferior à de brancos e ricos. Economicamente, é fácil deduzir por que quem tem mais dinheiro sempre teve mais chances de se manter numa universidade. Com os vestibulares e a disputa por vagas no ensino superior baseada num mecanismo que se fundamenta no mérito, o candidato melhor preparado para fazer o processo seletivo tem mais chances de ser aprovado do que um que tenha uma preparação pior. Isso é tão óbvio quanto a constatação de que um bom preparo geralmente depende de poder pagar uma instituição que ofereça ensino de qualidade, haja vista que o Estado não o oferece em seus níveis básicos. As cotas sociais foram a maneira encontrada de garantir que estudantes pobres, oriundos de escolas públicas, não competissem injustamente com outros estudantes, preparados pelo mercado, com uma formação de excelência. Já as cotas raciais se fundamentam numa constatação menos óbvia, porém não menos verdadeira: o racismo brasileiro não acabou com o fim legal da escravidão e nossas instituições racistas dificultam a ascensão social do negro. Em nossa sociedade, o negro tem o seu lugar social, e este, geralmente, não é o banco de uma universidade. Logo, nosso problema não é apenas de classe, mas de cor.

Mas as cotas são justas? É justo alguém que estudou mais ficar de fora pra entrada de alguém que estudou menos?

Esse raciocínio anti-cotas é um dos mais comuns. Segundo ele, o vestibular mediria objetivamente a competência de cada candidato, os classificaria em ordem decrescente, dando as poucas vagas no ensino superior aos que mais estudaram, mais se esforçaram, aos que são mais competentes e estão melhor preparados para o mercado de trabalho. Permitir o acesso de um estudante de escola pública que teve menos mérito que outro da particular que ficou de fora é a injustiça das injustiças. Afinal, quem é melhor e acertou mais questões na prova tem que passar, se você não passou, estude mais ano que vem! Não tem dinheiro pra pagar cursinho? Paciência, seja auto-ditada, vire-se. O que esse raciocínio egoísta esquece (de propósito) é que a injustiça existe desde que o mundo é mundo e que as cotas tentam repará-la e não criá-la.

Senão vejamos: eu sempre estudei num dos melhores colégios da minha cidade, meus pais sempre compraram os livros, revistas e jornais que eu quis, pagaram cursos de línguas, me levaram pra viajar, sempre me falaram da importância dos estudos (já que eles só chegaram aonde estão graças ao estudos), eu sempre tive professores que de fato se importavam com a minha formação entelectual e cultural, e quando eu fui prestar vestibular, meus pais pagaram o melhor cursinho da cidade, aquela máquina de aprovação. Junte-se a isso o fato de que eu nunca tive que me preocupar em conciliar trabalho com estudos e minha família é uma representante legitima da classe média burguesa e tecnocrata, cujos problemas cotidianos nunca atrapalharam demais minha formação intelectual. Por outro lado, Aqui na rua onde eu moro existe um cara, da minha idade, que tem uma trajetória de vida bastante diferente da minha. Eu não preciso descrever, porque você provavelmente já conhece: cara pobre, pais semi-analfabetos, teve que trabalhar desde cedo pra ajudar em casa, não via sentido nenhum na escola pública onde estudava porque nem os professores acreditavam no que estavam fazendo ali, seu dia era dividido entre trabalho, estudo e, de vez em quando, lazer. Ah, ele é preto também, e como moramos numa cidade violenta, já perdeu a conta de quantas vezes a policia já o revistou na rua, sempre sugerindo que ele podia ser bandido. Ele nem de longe tem a mesma formação que eu. Mas será que é justo eu e ele sermos avaliado pelo mesmo vestibular e competirmos de igual pra igual pra entrar numa universidade pública? Que meritocracia é esse que trata como iguais aqueles que têm trajetória de vida e formação completamente desigual? Que mérito eu tive em ter tudo que meus pais puderam pagar pra mim? Qual o desmérito do meu amigo pra não ter tudo que eu tive? Nossas formações opostas são fruto principalmente de pessoas que viveram antes de nós, nossos pais e avós, logo, temos quase nenhum mérito por elas. O argumento meritocrático dos anti-cotas cai por terra ante à constatação de que a boa formação que eles dizem ser suficiente para aprová-los em detrimento dos cotistas é fruto de escolhas e atitudes tomadas por pessoas que estão além deles, pais, avós, parentes que puderam lhes dar o privilégio de estudar numa escola particular e não depender do Estado. O sistema de cotas vem pra reparar uma injustiça que tá aí desde sempre, mas que a classe-média só começou a perceber (e a se importar) quando ela começou a ver seus privilégios ameaçados.

“Tapar o sol com a peneira”.

Essa metáfora é doce na boca de quem nunca se preocupou com nada além da bolha em que foi criado, mas de repente se sente ameaçado por pessoas que estão “roubando” a vaga dos melhores. De repente, pessoas que nunca sonharam em se preocupar com o estado da escola pública passaram a bradar por aí que a solução para o Brasil é o investimento em educação e que as cotas são apenas uma forma de esconder a incompetência do governo em oferecer ensino de qualidade. Para essas pessoas, as cotas deveriam ser substituídas por investimentos maciços nos níveis básicos de educação, que proporcionariam igualdade de oportunidades para todos, tornando, dessa forma, as cotas inúteis. De fato, investir em educação pública de qualidade é essencial, mas é um erro pensar que isso deva vir antes das cotas. Melhorar a educação pública é algo que vem sendo demandado há tempos, os resultados demoram para aparecer e não há duvida de que, caso políticas sérias sejam implantadas, a educação melhore gradativamente. A questão é que quem depende das escolas públicas quer entrar na universidade hoje e não pode esperar uma hipotética e distante melhoria na educação oferecida pelo Estado. Melhoria no sistema público de ensino e ações afirmativas são políticas que devem caminhar juntas e uma não pode ser usada pra justificar a inexistência da outra. O engraçado (e vergonhoso) nisso tudo é que fica claro que a maioria das pessoas que, de um dia pro outro, começaram a reclamar do governo por não oferecer ensino público de qualidade, só o passaram a fazer quando viram suas vagas na universidade sendo comprometidas. “Problema de vocês se o governo não ensina direito, vão reivindicar melhorias pra educação e deixem de ser acomodados, de querer tudo fácil.” Se amanhã as cotas forem extintas, mais da metade dessas pessoas vai esquecer completamente o caos que é o ensino público e voltar a viver o paraíso na terra que era o sistema de acesso ao ensino superior, justo e meritocrático, antes das cotas, essa maldição!

Tá, eu até concordo com as cotas pra pobres. Mas cota pra negro? Não existem raças, pô, somos todos iguais e quem tá sendo racista aqui é o governo que fica dividindo as pessoas entre pretos e brancos.

Tem muita gente mau caráter nesse mundo, gente que se utiliza de argumentos com os quais não concorda apenas pra levar vantagem. Mas também tem muito gente sincera, honesta (espero que seja a maioria) e ingênua que acredita piamente que o racismo no Brasil acabou com a Lei Áurea. Naturalmente, são pessoas que nunca vivenciaram uma situação em que a cor da pele fosse fator diferenciador de pessoas e, se vivenciaram, não se deram conta de que era racismo. Isso acontece porque o racismo brasileiro adotou uma característica curiosa e perversa, muito estudada por quem se interessa por questões de raça: bradamos ao quatro cantos que somos todos iguais, que o negro e branco construíram juntos o Brasil, acreditamos que vivemos numa democracia racial, mas no fundo marcamos bem claramente o espaço do negro e do branco na sociedade. Nosso racismo se perpetua se negando, pois é através da idéia da negação que ele pode se manter incólume às tentativas de enfrentá-lo. Repare como a estratégia é sutil e eficiente: as cotas, que tentam compensar séculos de injustiças que desembocaram no racismo atual são, elas mesmas, acusadas de discriminatórias e preconceituosas. O governo que as tenta implantar e os negros que se submetem a elas são os racistas, já que estariam assinando seu atestado de inferioridade racial. Ou seja, o racismo não existe (e parece que nunca existiu), quem o cria são os negros e as ações afirmativas, que tentam “tapar o sol com a peneira” e ver problema onde não tem. Se isso não é uma tentativa retórica desesperada que tenta deixar tudo como está, que tenta manter o status quo de uma minoria que nunca teve que se preocupar com cor de pele, eu já não sei o que é.

Então, existe raça ou não existe raça?

Biologicamente, raças entre humanos não existem, de fato. Já foi suficientemente provado que muitas vezes há mais diferenças genéticas entre brancos do que entre um branco e um negro. Os genes que mudam a cor da pele nos humanos são de uma quantidade ínfima, comparados à de outros traços físicos. Mas é de uma ingenuidade enorme (quando não mau-caratismo mesmo) dizer que a igualdade biológica significa igualdade social. No mundo real, negros e brancos são diferentes sim porque sempre foram vistos, por nossa sociedade racista, como diferentes. No passado, Igreja, Estado e Ciência afirmavam, pra quem quisesse ouvir, que brancos eram superiores aos negros. Hoje, essas instituições mudaram de idéia e até pediram desculpas aos pretos, mas a mensagem que passaram foi tão bem assimilada que a maioria de nós ainda não a esquecemos. E continuamos reproduzindo a idéia diariamente, sem nos darmos conta. O mundo dos negócios, do trabalho, das artes, da intelectualidade, da política, da alta sociedade, todos nos sugerem cotidianamente, na quase total ausência do negro nesses espaços, que eles talvez possam ser inferiores mesmo. E isso alimenta a pedagogia silenciosa do racismo. As exceções de sucesso social negro são usadas para fundamentar a idéia de que, se a maioria dos negros é pobre, é porque eles não se esforçaram o suficiente. Afinal, “se o Pelé conseguiu se dar bem na vida, por que outro negro pobre não conseguiria estudar muito e passar no vestibular por méritos próprios? Eles querem é tudo fácil, essa cambada de vagabundos!” Os argumentos que tentam provar que as cotas é que criam o racismo, como se ele não existisse, só são mais uma das estratégias ideológicas racistas que criamos pra justificar a manutenção das coisas. Claro que isso só é bom pros privilegiados, os brancos, os que nunca tiveram que se preocupar com essa história de cor. Só passaram a se preocupar agora, quando um monte de preto vai tomar metade das vagas na universidade deles, SÓ por serem pretos, esses racistas!

Mas olha, vou logo te avisar, esses negros que entraram na universidade por cotas vão ser muito discriminados. Todos vão saber que ele só entrou porque facilitaram as coisas, que ele roubou a vaga de alguém melhor. Tô te dizendo, essas cotas só vão aumentar o racismo.

As cotas não aumentam o racismo, elas apenas o evidenciam. Muitas pessoas que nunca tiveram a oportunidade de se mostrar racistas, passaram a fazer inveja a qualquer integrante da Ku Klux Klan, simplesmente porque viram negros tomando a vaga de gente mais preparada. Isso não quer dizer que não fossem racistas antes, apenas que tiveram uma bela oportunidade de desenvolvê-la e externá-lo. A História mostra que a entrada de negros em espaços que tradicionalmente não eram seus sempre foi alvo de resistência por parte dos brancos que antes os ocupavam.

O exemplo do futebol. No começo do século, era um esporte aristocrático e burguês, branco e europeu. No Brasil, só quem jogava era quem tinha condições de pagar do próprio bolso a importação do material esportivo necessário ao jogo. Era tudo muito caro. E os brancos brasileiros passaram muito tempo jogando bola entre si e muitos olhando pros lados vendo alemães, italianos e ingleses, muitos ingleses, e se imaginando na própria Europa. Jogar bola era o passatempo predileto de boa parte da juventude carioca da nossa primeira república. O problema é que a negada, que assistia aos jogos como podia, em cima de árvores, pulando muros, entre frestas na parede, aprendeu a jogar e começou a querer brincar junto. Alguns clubes suburbanos aceitaram a entrada eventual de um negro ou outro, e os brancos olhavam-nos de soslaio, com desconfiança (estávamos na época em que a Ciência confirmava a superioridade racial branca, e apenas há um par de décadas do fim da escravidão ). Como os negros faziam uns gols e tinham garra (hoje, “raça”), começaram a ser aceitos em maior quantidade, até que os maiores clubes não puderam suportar a afronta de ver negros metendo canetas e aviões nos brancos mais durões. Reagiram: proibiu-se que negros jogassem futebol oficialmente, criou-se uma liga só pra clubes exclusivamente de brancos amadores (o argumento oficial era que os negros, profissionais, só estragavam a beleza do jogo). Negros no futebol era inaceitável! Os brancos eram melhor preparados, podiam comprar os melhores equipamentos, não precisavam trabalhar, então treinavam mais, tinham mais técnica. Isso que esses pretos jogam não é futebol, é uma mistura de dança com luta. Eles são violentos e não dominam as regras, nunca viram um inglês jogar, não jogam como jogam os ingleses, e ainda ficam fazendo essas firulas esquisitas. Nós, brancos, temos mais técnica que eles, nos esforçamos mais, esses pretos não podem tirar nossa vaga no time, não é justo. Meritocracia.

Muitos anos e muito racismo depois, o negro está mais presente no futebol que o branco, o pobre, mais que o rico. A resistência à entrada deles nesse espaço foi grande, como é grande hoje a resistência às cotas. Não creio que um negro que já tenha sofrido racismo ache que, entrando na universidade por cotas, vá ter uma vida universitária e profissional longe de qualquer manifestação de racismo. Mas agora ele tem meios legais pra se defender do preconceito e já conseguiu entrar na universidade, um espaço que tradicionalmente não pertence aos indivíduos de sua cor.

Cotas a longo e a curto prazo.

Todo esse debate em torno das cotas é salutar por trazer à tona a questão racial, que escondida é uma das principais estratégias de perpetuação de nossas instituições racistas, mas desvelada, se torna mais fácil de ser entendida e o racismo, combatido. Por outro lado, a entrada maciça de negros e pardos no ensino superior só eleva o nível de diversidade cultural na academia, que deve ser universal, plural. Eu sempre achei que a maioria dos nossos problemas começam a ser resolvidos quando a gente aprende a se pensar no lugar do outro. Não é preciso ser negro ou pobre pra ter noção do que é sentir a dor e o peso do racismo e do preconceito social, basta fazer um exercício intelectual e se colocar em situações por que nós brancos classe-média, nunca passamos, por sermos brancos e termos dinheiro. A troca de experiências e vivências entre negros e brancos (e índios e orientais), ricos e pobres, só pode ser benéfica e engrandecedora pra todos. Também não é preciso ser negro ou pobre para imaginar a felicidade de ser aceito numa universidade, através de um sistema sem o qual seria muito difícil você conseguir. Aos estudantes de escola particular que foram preteridos pelo sistema de cotas, resta a certeza de que alguém que nunca teve as mesmas oportunidades que você entrou no seu lugar, mesmo não indo tão bem na prova. É triste, por seu lado, mas é possível pensar que, para o todo, para a comunidade, é bom. É sempre necessário ser menos egoísta.

A longo prazo, as cotas combatem o racismo porque em alguns anos teremos uma boa parte de negros em espaços que antes eles não ocupavam, e isso engendraria uma mudança de mentalidade fantástica incompatível com posturas racistas e preconceituosas. Quantos médicos negros você já teve? Quantos advogados, engenheiros, políticos, intelectuais, dilpomatas negros você já viu? Quantos presidentes negros já tivemos? Apesar da pouca representatividade nessas áreas, grande parte da nossa população se declara negra. Eles estarem ausentes desses espaços não significa que são incapazes, indolentes como muitos racistas fazem parecer e ficam espalhando por aí, contaminando nossas crianças aos poucos. Significa apenas que negros tiveram e têm menos oportunidades que os brancos em geral. As cotas são uma parte dessas oportunidades, resgatada depois de tantos anos de luta do movimento negro. Não são o suficiente, mas são o começo. Eu sonho com o dia em que meus filhos e netos vejam tantos representantes negros quanto brancos em todas essas áreas e sejam menos encorajados a acreditar nesse mito eloquente da diferença entre raças. Que não sejam ensinados a ser racistazinhos desde cedo. E que os racistas velhos que ainda restarem sejam apenas vistos como ecos de um passado, bizarros e ignorantes, constantemente demoralizados pelo mundo real, onde negros, brancos, índios e toda sorte de pessoas diferentes sejam bem representadas nas várias atividades humanas. Por enquanto, é só um sonho. Com as cotas pode ser realidade.

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